Minha intenção ao escrever aqui nesse espaço é contar histórias de dentro da polícia. Coisas dos bastidores que muitas vezes a população em geral não fica sabendo. Normalmente o que a mídia mostra é o lado glamouroso da PF e PRF. Mostra o resultado das operações, como elas deram resultados e os figurões que foram presos. Quase nunca mostram o quanto o policial teve que suar e, até muitas vezes, se quebrar para conseguir um resultado. As pessoas acostumadas a ver a polícia sempre ganhando, podem falar: "O APF do Norte só se fode! Só conta as coisas que não deram certo". Conto esses causos porque para uma ação dar certo, houve muitas antes que deram errado. Mas chega de conversa mole, e vamos para mais uma vez que quase deu merda.
A UOP (posto da PRF) onde eu trabalhava ficava numa estrada que ligava a capital a uma cidadezinha do interior, um trecho de cento e poucos quilômetros. E nessa cidadezinha havia uma festa anual, quando eles sempre chamavam para alegrar a festa, de forma gratuita, na praça central, uma atração nacional famosa. Então o fluxo de carros aumentava demais nesse trecho. E, por isso, a PRF era obrigada a chamar Policiais Rodoviários das outras regionais para ajudar na fiscalização.
Nessa UOP, nos dias normais, ficavam apenas 3 policiais no plantão. Na época dessa festa na cidadezinha, o efetivo era de uns 20 policiais por plantão. Eu nunca tinha visto tanto PRF junto. Além do efetivo extra vindo de fora, nós, que já éramos lotados lá, tínhamos que fazer plantões extras para conseguir dar conta da fiscalização de tamanho fluxo de veículos.
Para vocês terem uma ideia, chutando por baixo, o fluxo aumentava umas 50 vezes. Talvez até mais. E por causa do aumento do efetivo de policiais na UOP, a PRF, para garantir que ninguém ficasse sem ter o que comer, acabava providenciando o almoço e a janta, já que os quiosques que ficavam próximos não teriam condição de atender esse aumento no número de pedidos de almoço e janta. Nesse dia eu não pude almoçar a comida que a PRF forneceu, pois no horário eu estava longe, no trecho, fiscalizando. Então eu comi um lanche qualquer e vida que segue.
Quando estava na hora da janta, a banda que era a atração da festa parou na UOP e pediu nossa ajuda (era uma banda famosa). Eles estavam indo de Van da capital para a cidadezinha, e o engarrafamento na entrada da cidadezinha era grande. Então eles perguntaram se era possível escoltá-los para que conseguissem chegar à praça central. O chefe perguntou quem gostaria de ir, e eu fui um dos que voluntariei. Nunca tinha feito esse tipo de trabalho, queria experimentar.
Se não tivéssemos feito essa escolta a eles, eles não teriam conseguido chegar. A cidade estava lotada, tanto de carro quanto de gente. Tivemos que ir abrindo caminho e segurando o fluxo para conseguir chegar até o local. A escolta demorou umas 3h ou mais. Só sei que quando chegamos de volta na UOP a janta estava fria e fora da geladeira desde o almoço (guardem essa informação). Quase todo mundo já tinha jantando. Esquentei a minha marmita no micro-ondas e mandei pra dentro. Estava morto de fome. Só tinha comido aquela besteirinha na hora almoço e mais nada.
O plantão tem duração, normalmente, de 24h, e nesses dias de festa e aumento de fluxo o descanso só é possível após tudo acalmar. Então, após a janta, continuamos a fiscalização na BR até a madrugada. Eu não lembro ao certo a hora, mas as coisas finalmente se acalmaram. E após frenética fiscalização, os policiais finalmente puderam começar a se recolher para um merecido descanso. Esse descanso nós chamamos de "quarto de hora". funciona assim: enquanto uns descansam os outros ficam acordados para qualquer eventualidade, e depois invertem-se os papéis.
Uma observação:
Antes que falem que dormir no plantão é muita folga, fiquem sabendo que se houver um acidente na BR, que pode ter acontecido a mais de 300km de distância, o PRF obrigatoriamente tem que ir atender. Se ele estiver exausto, por causa disso, há a chance de se envolver também em um acidente. Então, nada justifica ficar todo mundo acordado sem fazer nada. Melhor descansar e guardar energia para o momento adequado.
Fim da observação.
Como a UOP era pequena e não tinha espaço para todo mundo, então havia muitos policiais dormindo em colchonetes, em sacos de dormir e até mesmo dentro das viaturas. Uns na sala, outros nos alojamentos. Esse esforço é o que ninguém normalmente fica sabendo. Você está descansando no conforto da sua cama, enquanto tem gente que defende você e está dormindo mal, apertado e longe da família. A profissão está longe de ser só glamour.
Acordei do "quarto de hora" por volta das 6h da manhã. Consegui dormir quase nada. Era muita gente entrando e saindo, não conseguia relaxar. E, quando acordei, fui lavar o rosto e escovar os dentes. Só que ambos os banheiros da UOP estavam ocupados. É muito raro isso acontecer. Achei estranho. Então decidi ir no banheiro dos usuários da via. É um banheiro fora da UOP que qualquer um que esteja passando pode usar. Fica sempre aberto e, na medida do possível, limpo. Depois fui tomar um café para aguardar a rendição. O plantão acabava 8h da manhã.
Descobri, conversando com os colegas, que muitos haviam passado mal por causa da comida do dia anterior (lembram que tinha ficado fora da geladeira?). Passaram a madrugada vomitando ou no banheiro! Comecei a me preocupar. Até então não tinha sentido nada.
A rendição, nesse dia, não seria na própria UOP, como era de costume, seria feita no início da BR, por motivos de logística. Normalmente os colegas vão até a UOP e nos rendem. Nesse dia nós iríamos encontrá-los com as viaturas ostensivas e eles chegariam para nos render com as viaturas veladas (que não são identificadas e nem pintadas nas cores da polícia), trocaríamos de viaturas, e cada um seguiria para seu destino: eles para a UOP e nós para a Superintendência na capital. Só que desse ponto da troca até a superintendência era mais 1h e meia de trajeto, dependendo ainda do trânsito. E esse tempo de trajeto começou a me preocupar, já que eu acabara de sentir uma pontada na altura do intestino que me avisava: chegue logo num banheiro!
Cutuquei o colega e falei: mermão, acelera aí senão vai dar merda. E o colega começou a rir. Eu falei: é sério, porra, tô suando frio aqui. Quem já teve dor de barriga de comida estragada sabe do que eu estou falando. Aí ele me olhou sério e perguntou: tá nesse nível? Eu falei: sim. Então ele pisou fundo. Mas lembrem que eu falei que seria pelo menos mais 1h30min? Pois é, não ia dar tempo.
A floresta começou a ficar atraente. Fiquei pensando, entre uma cólica e outra, se eu deveria pedir pra ele parar ali mesmo, pra eu correr pro mato. Nessa hora a minha camisa, mesmo no ar-condicionado, já estava encharcada de suor. Foi então que vi um posto de gasolina de beira de estrada. Eu conhecia o posto, trabalhava naquele trecho a algum tempo, mas não sabia as condições do banheiro deles. Mesmo assim pedi para o colega encostar. Ele parou perto de onde era o banheiro e fui lá ver.
Era pior do que você possa imaginar. O banheiro nem porta tinha. Por mais vontade que eu tivesse, minha dignidade não me deixava usar aquilo. Então resolvi recorrer ao gerente do posto. Perguntei dele se tinha banheiro, e ele me disse que era aquele lá atrás. Eu estava fardado, tive que recorrer, e falei: amigão, aquele banheiro nem tem porta, e isso é uma emergência policial. Ele percebeu meu desespero e falou: pede a chave dos frentistas.
Isso foi engraçado porque eu olhei pro frentista que estava longe e falei: irmão, a chave do banheiro, pode me emprestar. Acho que na minha cara estava estampado meu desespero, porque ele sacou a chave rapidamente do bolso e arremessou-a pra mim. Sucesso. Banheiro limpinho. Papel de emergência na mão. Mais uma operação bem sucedida, depois de alguns sacrifícios.
E descobri depois, conversando com os colegas, que uns 70% daqueles que trabalharam naquele dia foram abatidos por causa da comida servida. Depois desse dia aprendi. Nada me faz comer comida que ficou fora da geladeira aqui no nosso clima. Fico com fome, mas pelo menos com a dignidade íntegra.
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